01. O aprimoramento do nosso Estado de Direito exige a propalada reforma política, que se avizinha; dentre tantos outros temas, é hora de colocar em pauta também o deplorável e desaforado foro privilegiado (ser julgado diretamente pelos tribunais) que, apesar de enraizado na nossa cultura hierarquizada, tem que ser completamente extirpado. É nosso dever reconhecer a verdade de que a impunidade aqui generalizada não é privilégio exclusivo dos políticos ou das oligarquias dominantes, que sempre desfrutaram de uma espécie de imunidade frente aos rigores da lei. Nossa História ajuda a entender tudo isso (diz Ronald Raminelli). Para começar: na alma dos colonizadores que para ca vieram já estavam impregnados conceitos como hierarquia social, privilégios individuais, aos amigos do rei as benesses da grei, aos inimigos os rigores da lei etc. O “jeitinho” ficou mais indecente e escandaloso depois do seu abrasileiramento, mas ele é tão antigo nos costumes ibero-americanos como andar para frente. O hábito de alcançar vantagem em tudo não é uma invenção recente: já estava presente em toda nossa vida colonial. De democracia não se pode falar nesse período, marcado pelo mais acabado e abominável absolutismo. O Brasil foi um grande campo de concentração durante mais de três séculos, comandado por alguns amigos ou funcionários do rei, por militares e por religiosos, que gozavam de todos os privilégios imagináveis (destacando-se o tratamento privilegiado perante a lei penal).
02. A impunidade dos criminosos e larápios de todas as classes sociais (a punição não alcança sequer 1% dos crimes) encontra explicação na absoluta incapacidade do Estado de promover o império da lei. A certeza do castigo (que era pregada por Beccaria, em 1764) aqui nunca foi uma realidade. Todas as classes sociais delinquem (como afirmam Durkheim, teoria do labelling approach, P. Antonio Vieira, A arte de furtar etc.) e, ao mesmo tempo, todas gozam de ampla impunidade entre nós. Mas a mais deplorável de todas, a que envergonha até à raiz as nações fracassadas social e eticamente, é a impunidade em razão da hierarquia ocupada por algumas pessoas na sociedade. A impunidade dos seus crimes (do colarinho branco ou comum) tem raízes profundas nos privilégios concedidos pelo rei a seus aliados por meio das famosas “graças”, que eram destinadas, no princípio, para poucas pessoas, fundamentalmente aos nobres e aos fidalgos. Fidalgos (filho-de-algo) são descendentes dos guerreiros que lutavam em favor do rei (eram considerados duques, marqueses, condes ou barões). Normalmente não eram titulados. Ocupavam os mais elevados cargos e contavam ainda com o benefício do foro privilegiado (julgamento pelos seus pares), isenção fiscal e polpudas rendas da monarquia. Nobres eram os condecorados pela monarquia em razão das suas posses ou dos seus títulos.
03. No Brasil, sobretudo quando Portugal já se encontrava financeiramente quebrado, muitos proprietários compraram o título de nobre (falava-se em “nobreza da terra”, para distinguir a burguesia economicamente poderosa). Eles ocupavam também altos cargos do reinado (magistratura, por exemplo) e gozavam dos mesmos privilégios dos fidalgos. Fidalgos e nobres de linhagem recebiam pensões e tinham direito ao “foro privilegiado”, quando se envolvessem com causas cíveis ou criminais. Nas Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas os fidalgos e nobres eram tratados com toda distinção (incluindo-se penas diferentes). Até hoje perdura socialmente essa tradição (a igualdade perante a lei é um dos mais deploráveis mitos do nosso Estado de Direito).
04. O que se deve lamentar (com profunda tristeza), na contemplação deste deprimente cenário de desigualdades aberrantes e estonteantes, que confere ao crime organizado da troika maligna formada pelos políticos e outros agentes públicos + agentes econômicos + agentes financeiros, é ver o quanto a sociedade civil brasileira ainda se compraz em persistir na sua abjeta cegueira, livremente assumida em virtude de uma refinada ideologia de dominação, que acabou por disseminar e por infiltrar em todos os poros da nação um turbilhão de maus costumes, de cizânias, de segregação racial, de intolerância e de violência. Recorde-se: a escravidão entre nós demorou quase 4 séculos para ser extirpada porque ela penetrou o ambiente doméstico das classes sociais média e alta (veja J. M. De Carvalho). Todos tinham escravos, não somente os senhores de engenho ou fazendeiros. Os maus costumes (privilégios) que invadem os mais ocultos poros da nação são os mais difíceis de serem extirpados. Se algo tivesse que ser pedido à Providência certamente as preces seriam dirigidas para que nos afaste das bordas do vertiginoso e profundo abismo a que está nos conduzindo (também) o crime organizado estatal ou o dos poderosos econômicos e financeiros; que toda força do mundo seja empregada para que possamos resistir às tentações do mal que assola nosso País desde sua fundação.
05. Estimado leitor: não é sem grande pesar e uma profunda dor no coração que estamos descrevendo os horrores da troika maligna que se apoderou do Brasil (sendo disso sintomas a Petrobrás, o cartel do metrô de SP, os mensalões do PT e do PSDB etc.). Isso sempre é feito, é bom que se diga, com muito custo (pessoal e emocional), porque todo o oposto é o que gostaríamos de estar descrevendo, com a alegria e inocência de uma imberbe criança. De qualquer modo, quem ignora o cenário deplorável em que nos encontramos em vários setores da nossa existência pública? Esta magnífica e nobre nação, que a todos causa uma indescritível admiração, que pela sua potencialidade poderia estar ocupando um lugar completamente distinguido entre as demais nações do mundo globalizado, se acha hoje inteiramente desmoralizada (72º lugar na percepção da corrupção, segundo a Transparência Internacional), por efeito da cínica imoralidade, sobretudo de todos aqueles que a dominam, incluindo-se as elites oligárquicas de todos os matizes (esquerda, centro ou direita), marcadas pelo egoísmo bem como pelo acendrado parasitismo (como bem descreveu o sociólogo sergipano Manoel Bomfim). De tão desacreditada entre as nações, apesar da sua enorme potencialidade de crescimento e de progresso, parece estar, de há muito, condenada a representar a escória de todas elas (J. F. Lisboa). Em vão somos tentados a nos iludir, supondo falso ou exagerado tudo que narramos criticamente sobre nosso futurista país; debalde pensamos em questionar esse papel de censor, porque a triste realidade dos fatos aí está, com todas as suas mazelas e desgraças, bastando para isso a leitura diária dos meios de comunicação. Parafraseando W. H. Auden, “se realmente queremos viver [numa sociedade próspera, decente e sustentável], seria melhor que começássemos de uma vez por todas tentar isso; se não queremos, não importa, porém, seria melhor que começássemos a morrer”.
Luiz Flávio Gomes
Professor
Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG.   - Visite www.apdobanespa.com
APdoBanespa - 31/10/2014
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