Caixa-preta dos fundos de pensão: o que o nosso bolso tem a ver com isso? Como agem os donos cleptocratas do poder?
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Luiz Flávio Gomes, Professor de Direito do Ensino Superior
Abriu-se a caixa-preta dos fundos de pensão. “Onde se puxa uma pena sai uma galinha” (Teori Zavascki). Quatro fundos de pensão estatais estão sob a mira da PF (na operação Greenfield): Petros (fundo de pensão dos funcionários da Petrobras), Previ (fundo dos funcionários do Banco do Brasil), Funcef (fundo dos funcionários da Caixa) e Postalis (fundo de pensão dos funcionários dos Correios). Sete pessoas foram presas (até agora). São mais de 40 os envolvidos.
Caixa-preta dos fundos de penso o que o nosso bolso tem a ver com isso Como agem os donos cleptocratas do poder
Os fundos de pensão são dinheiro dos trabalhadores de empresas estatais gerenciados com o objetivo de complementar suas aposentadorias. As gerências, até aqui, têm sido políticas. Os fundos investem em empresas privadas. O Estado tem ingerência nos fundos. Estado, Política e Mercado estão envolvidos nesses negócios, que constituem o núcleo essencial do capitalismo (estatal e privado) à brasileira, que é causador de imensos danos sociais (social harm).
O governo também contribui para os fundos e ainda tem responsabilidade sobre eles. Há dinheiro público envolvido no negócio. Mais: quando um fundo tem prejuízo isso pode resultar na necessidade de dinheiro público para cobrir o rombo. Em síntese, nosso bolso está envolvido na história.
Empresas investigadas ou relacionadas com a operação Greenfield: Bradesco, Santander, Gradiente, OAS, WTorre, Engevix, auditoria Deloite, Eldorado Celulose (irmãos Joesley e Wesley Batista, donos da J&F), GruPar (Aeroporto de Guarulhos), Sete Brasil, Rio Bravo, Multiner etc. Além da Eldorado, a J&F controla ainda a JBS, Alpargatas, Vigor, Banco Original, Oklahoma e Canal Rural. Dos seus quadros saiu o atual ministro da Fazenda (Meirelles). A Eldorado já tinha sido citada na delação premiada do ex-vice presidente da Caixa, Fábio Cleto, que acusou o pagamento de propinas para obtenção de um financiamento de R$ 960 milhões do FI-FGTS. O esquema envolveria o deputado Eduardo Cunha e Lúcio Funaro, apontado como seu operador.
Motivo da operação: déficits bilionários gerados pelos fundos de pensão (algo como R$ 50 bilhões, conforme a Previc) e gestão temerária ou fraudulenta dos fundos. Dez operações, sobretudo, estão sob investigação (há suspeita de criminalidade organizada, corrupção e crimes contra o sistema financeiro nacional). Do total, R$ 8 bilhões parecem ser inequivocamente desvios criminosos.
Como seria a “gestão temerária” ou fraudulenta? Investimento do fundo em empresas com prejuízos. Não se trata de caso isolado. Há diversos investimentos assim. Investiga-se se alguém ganhou dinheiro com isso. Teria havido manipulação para favorecer pessoas ou grupos empresariais?
A Justiça Federal determinou o sequestro de bens assim como o bloqueio de ativos e recursos de 103 pessoas físicas e jurídicas no valor de R$ 8 bilhões (Valor Econômico).
“Durante as investigações, alguns núcleos criminosos restaram configurados: o núcleo empresarial, o núcleo dirigente de fundos de pensão, o núcleo de empresas avaliadoras de ativos (auditorias) e o núcleo de gestores e administradores dos FIPs” (Fundos de Investimentos em Participações), informou a PF em nota.
A Postalis, por exemplo, perdeu R$ 5 bilhões com aportes em uma empresa que não fazia sentido nenhum, que era a Sete Brasil (ver Míriam Leitão).
Como funciona o capitalismo à brasileira (cleptocrata)?
Há muito tempo já se falava na má gestão dos fundos de pensão (particularmente no governo petista e peemedebista). Quem pediu a investigação, em 2014, foi o PSDB (contra os dois partidos). O uso intenso do dinheiro dos fundos de pensão nas empresas nacionais, no entanto, foi feito também no governo FHC (na era das “privatizações” de fachada). O senso comum supõe que o liberalismo econômico (e as privatizações) tivesse reduzido o tamanho do Estado-empresarial brasileiro. Ledo engano (ver S. Lazzarini, Capitalismo de laços, p. X a XVI). As privatizações do FHC envolveram dinheiro público. Dava-se dinheiro público para as empresas comprarem as estatais. Na era lulopetista a prática se intensificou.
Os fundos de pensão têm tudo a ver com o que é conhecido como capitalismo à brasileira (ou capitalismo de laços, como diz Sérgio Lazzarini, em livro com esse título). Ou crony capitalism (capitalismo dos amigos próximos).
O capitalismo à brasileira envolve setores do Mercado (empresas e bancos) e o Estado. É praticado, portanto, pelos donos cleptocratas do poder (que não se enriquecem apenas pela corrupção, senão também pelos favorecimentos políticos, sobretudo com créditos subsidiados ou capitalizados nas empresas, pelos fundos de pensão).
Trata-se de um “clube”, no plano federal, restritíssimo (com menos de 0,001% da população). Ele paira sobre o eleitorado médio (classes A e B que constitui quase 1/3 da população) assim como o eleitorado da base da pirâmide (2/3 da população). Os beneficiários do capitalismo à brasileira são somente os seletos integrantes do “clube” do capitalismo à brasileira. Os prejudicados somos todos os demais habitantes do país. Uma pequena elite extrativista saqueia o máximo possível do dinheiro público para ela.
A esse “clube” fechadíssimo somente pertencem algumas famílias e alguns capitalistas (notadamente nacionais). E também, claro, os que financiam as campanhas eleitorais dos políticos (formando-se redes de clientelismo).
Você que está lendo esse artigo muito provavelmente nunca botou os pés dentro desse insólito “clube”. Eu tampouco. Como o mundo nos é explicado em fragmentos, muitos não têm ideia de como funciona esse capitalismo, que descende diretamente do patrimonialismo português, que é uma via de mão dupla: o Estado brasileiro está muito presente na exploração do lado produtivo da econômica (não deveria ser, mas é um Estado-empresário forte) enquanto setores do Mercado estão muito presentes na exploração do Estado (do dinheiro público).
Nesse sentido, o Estado brasileiro sempre foi privatizado pelo Mercado. Essa via de mão dupla (envolvendo o Mercado e o Estado reciprocamente) não foi abordada enfaticamente por Faoro (Os donos do poder). Nisso reside uma grande omissão em sua obra (ver Jessé Souza, A tolice da inteligência brasileira).
Não é verdade que a corrupção seja um fenômeno exclusivamente estatal. Muitas empresas e bancos do mercado praticam a corrupção e o favoritismo para seu enriquecimento.
As fronteiras entre o público e o privado se esvanecem no capitalismo à brasileira. Os interesses econômico-financeiros, políticos e governamentais estão amalgamados em torno de um único objetivo: se apropriar da coisa pública, frequentemente de forma ilícita ou politicamente favorecida.
O mau funcionamento das instituições (políticas, econômicas, jurídicas e sociais) que fomentam ou acobertam esse enriquecimento promíscuo constitui o cerne da cleptocracia. A roubalheira do dinheiro público não é a cleptocracia, o fomento e o acobertamento dela sim.
São várias as consequências nefastas do capitalismo à brasileira: concentração do mercado e da riqueza do país, falta de transparência nos negócios, eclipse da concorrência, favorecimento de amigos ou de pessoas ou famílias influentes, escassez do dinheiro público para o cumprimento das funções essenciais do Estado (educação, saúde, segurança e Justiça – coisas que o Mercado não faz com acesso para todos) etc. (ver Sérgio Lazzarini, Capitalismo de laços).
O capitalismo à brasileira cria conglomerados empresariais potentes (com tendência de monopolização do mercado – o que pode significar prejuízo para os consumidores, em razão dos preços altos praticados). O mundo empresarial do capitalismo de laços é pequeno (S. Lazzarini). Desses conglomerados participa o Estado-empresário (sobretudo por meio dos seus bancos e dos fundos de pensão). Fala-se em redes de propriedade quando os capitalistas têm posições acionárias conjuntas nas mesmas empresas (S. Lazzarini).
O uso intenso dos fundos de pensão (e do BNDES) para capitalizar empresas privadas se deu com FHC (e foi agravado com o lulopetismo) (ver Sérgio Lazzarini, citado). Tudo feito sem praticamente nenhuma transparência. Sendo escasso (e muito caro) o dinheiro no mercado financeiro, fortunas incalculáveis são alcançadas (pelos donos cleptocratas do poder) com o uso do dinheiro público subsidiado ou investido no negócio privado (isso é o que a PF está agora investigando).
A “porta-giratória” é constante: agentes do mercado vão para dentro do Estado (para ocupar cargos públicos) e vice-versa. O atual ministro da Fazenda (Meirelles) veio da JBS. O anterior (governo Dilma) veio do Bradesco. Isso tende a gerar muita sinergia nos negócios (e nos favoritismos estatais). “Benesses estatais”, se dizia no tempo de Colônia. Os interesses se cruzam. O clube privilegiado do capitalismo à brasileira se fortalece a cada governo. A corrupção é fenômeno frequente nesse cenário. Daí nasce a promiscuidade nas relações entre os agentes privados e públicos, destacando-se os políticos e os partidos.
Os novos donos cleptocratas do poder se sofisticaram (desde a década de 30, com Getúlio no comando); a Lava Jato vem demonstrando os laços de corrupção e favorecimento entre eles, mas a roubalheira do dinheiro público é a mesma. E a conta, claro, sempre vai para o contribuinte.
Os verdadeiros donos do poder são os que se envolvem em laços corporativos-estatais. Muitas empresas do Mercado não tomam esse caminho. As que se inclinam por essa seara, sabem que a riqueza se faz por meio das amizades, dos partidos, dos políticos e dos financiamentos eleitorais. Muitas fortunas foram e são construídas no Brasil por essa via promíscua. Pior: contando com o fomento ou acobertamento das instituições (nisso consiste a cleptocracia).
A análise das doações eleitorais de 1998 e 2002 mostra que elas geraram impactos no valor de mercado das empresas doadoras: de cada R$ 100 mil em doação a políticos vencedores há um incremento das ações em 2,8%. As doações são um bom negócio e abrem portas para empréstimos subsidiados, uso do dinheiro dos fundos de pensão, captura de benefícios públicos, isenções fiscais, restrição do mercado estrangeiro, concentração de renda, monopólios, desincentivos à inovação etc.
O Brasil dos donos do poder continua regido pelos laços, alianças e amizades. DaMatta (a casa e a rua), Sérgio Buarque de Holanda (o homem cordial) e Faoro (Os donos do poder e o patrimonialismo) mostram isso em suas análises antropológicas e sociológicas. O erro que cometem é esconder que o mundo do Mercado está envolvido até o último fio de cabelo com nossa corrupção e nossa cleptocracia. Jogam culpa sempre apenas no Estado (e isso não é correto).
Há ladrões do dinheiro público tanto entre os agentes públicos (governantes, políticos, funcionários) como entre os agentes privados. O financiamento das campanhas eleitorais está na raiz dessa problemática.
O que fazer?
Sérgio Lazzarini (Capitalismo de laços) sugere: mais transparência, isolamento político (afastamento da dependência entre os mundos da economia e da política), redução dos custos de transação (burocracia, dificuldade de abrir empresas, judiciário moroso etc.) e duro combate às condutas violadoras da concorrência (o que vem sendo feito, agora, em certo sentido, pela Lava Jato).
Erro frequente: supor que todo esse vínculo entre o mundo do Mercado e do Estado seja coisa “brasileira”. Sarkozy, por exemplo, na França, está na iminência de ser julgado por suas campanhas eleitorais “compradas” pelo mundo econômico-financeiro. Os laços, as amizades, as alianças, os conchavos existem em todas as democracias no mundo todo. A diferença é de grau: nos países cleptocratas (como é o caso do Brasil) as instituições (políticas, econômicas, jurídicas e sociais) são complacentes com essas práticas extrativistas e elitistas. Fazem parte do jogo. Nações com instituições extrativistas tendem ao fracasso (ver Acemoglu-Robinson, Por que as nações fracassam).   - Visite www.apdobanespa.com
APdoBanespa - 07/09/2016
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