Publicado por Ylena Luna
Diversos meios de comunicação noticiaram nos últimos dias a história de Maria Ribeiro da Silva Tavares.
Filha de um fazendeiro de Pelotas (RS), ela teria gastado toda a herança de viúva para levar presos de alta periculosidade para viver consigo, ao lado do filho pequeno. Em 1936, aos 24 anos, convenceu a direção do Presídio Central de Porto Alegre, onde já era voluntária, a dar abrigo a 36 presos em sua casa. Até a sua morte, aos 102 anos, morou no local onde 63 homens cumpriram pena em regime semiaberto. E um importante detalhe: no fim de sua vida, foram os presos – por ela alcunhados de “anjos” –, que cuidaram dela.
Poucos dias antes o portal IG havia divulgado interessante entrevista com o pesquisador Fernando Fontainha, da FGV Rio. De acordo com ele, os concursos públicos no Brasil servem para selecionar os que mais se prepararam para as provas (principalmente as objetivas), e não os mais competentes. Isso refletiria na qualidade dos serviços públicos e na própria igualdade de oportunidades, já que, de ordinário, são aprovados nos concursos aqueles que têm melhores condições econômicas para não trabalhar enquanto estudam para as provas, e não aqueles mais preparados e vocacionados ao exercício da função pública. Sugere o entrevistado, para minimizar essa anomalia, que métodos como provas práticas ou requisitos de experiência prévia sejam considerados na seleção.
Essas duas notícias, que aparentemente quase nada possuem em comum, permitem importante reflexão sobre o método de seleção de magistrados no Brasil. Guardadas as devidas proporções, ainda seria possível encontrar, com a metodologia de seleção em vigor, juízes que possam dedicar uma vida, tal qual a da vocacionada assistente social Maria Ribeiro de Souza Tavares, à causa da Justiça? Em outros termos, a vocação para o ofício, o tino para a judicatura, ainda tem algum relevo na hora de se decidir entre alguém que, simplesmente, busca um emprego (um bem), e outro que tenha condições e disposição para servir ao público e à sociedade?
Para responder a esta indagação, convém destacar que a Resolução CNJ n. 75/2009 – que dispõe sobre os concursos públicos para ingresso na carreira da magistratura em todos os ramos do Poder Judiciário nacional – estabelece ser o certame composto de 04 etapas, todas baseadas em conhecimentos estritamente técnico-jurídicos: a) prova objetiva (testes de múltipla escolha); b) duas provas escritas (incluindo prática de sentença cível e criminal); c) prova oral gravada (com prévio sorteio de pontos); e d) prova de títulos. Na busca de critérios de seleção estritamente objetivos e, consequentemente, de evitar favorecimentos pessoais, a Resolução veda qualquer incursão, pela banca examinadora, no perfil pessoal do candidato para o cargo de magistrado, ainda que permita alguma avaliação técnico-jurídica (e não concreta) sobre conhecimentos de humanística (conteúdo das provas escrita e oral).
Recordo-me que quando ingressei nos quadros do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (1998), citada Resolução não estava em vigor. Na ocasião, logo após na prova oral, fui sabatinado pela banca examinadora sobre aspectos relacionados à minha vida pessoal e experiência profissional; sobre meus projetos futuros de vida; sobre minha disposição para o trabalho e estudo, para iniciar a carreira longe da família e dos amigos; sobre o conhecimento que tinha da realidade do Poder Judiciário e das mazelas da sociedade brasileira de então. Por evidente, buscava a banca informações que pudessem subsidiar a decisão sobre minha vocação para o exercício da magistratura, algo que as demais etapas estritamente técnico-jurídicas do certame não eram capazes de revelar.
Talvez a Resolução CNJ 75/2009 entregue à sociedade juízes capazes de aplicar adequadamente o Direito aos conflitos. E isso não só é bom, como necessário. Mas ela, de ordinário, não garante que os juízes selecionados saibam lidar com o jurisdicionado, com os advogados e membros do Ministério Público, com as aspirações, decepções e preocupações de todos eles; que saibam gerir processos e unidades judiciais (inclusive os recursos pessoais e de informática), tirando delas a maior produtividade possível; que sejam capazes de inovar e reverter o quadro desolador, revelado pelo Relatório Justiça em Números 2014, do Conselho Nacional de Justiça, de que o Judiciário Brasileiro atingiu o ápice da produtividade, pese a tendência de continuidade no aumento da demanda.
Não que o ser juiz represente um sacerdócio, uma das muitas bobagens que se escreveu (e ainda se escreve) ao longo dos anos, e que faz alimentar a mente já deturpada de alguns. Juiz não tem nada de Santo e, exatamente para aplicar a Justiça dos homens (e não a Dele), espera-se que ele seja dotado de uma enorme carga de humanidade para compreender e lidar com o seu semelhante, com todos os defeitos e qualidades ínsitas dessa condição.
Provas puramente técnico-objetivas não são capazes de garantir que magistrados gostem e sejam especialistas em gente; que sejam vocacionados ao adequado exercício da Jurisdição.
Por isso, o debate sobre a forma de seleção dos magistrados que queremos para o Brasil é de todos. Debate que não pode se circunscrever ao estrito espectro do Conselho Nacional de Justiça ou da Magistratura. Debate que não pode ter foco exclusivo, como acontece hoje, no método de seleção de Ministros para o Supremo Tribunal Federal, sem referência à base. Debate que passa pela composição das bancas examinadoras dos concursos para a magistratura, pela forma como realizadas as provas, pelo papel que deveriam ter as Escolas da Magistratura na seleção e aperfeiçoamento dos juízes. Enfim, debate que deve levar à definição do que é o Poder Judiciário que queremos e de quem devem ser aqueles que integram seus quadros.
*Fernando da Fonseca Gajardoni. Doutor e Mestre em Direito Processual pela Faculdade de Direito da USP (FD-USP). Professor Doutor de Direito Processual da Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da USP (FDRP-USP). Juiz de Direito no Estado de São Paulo.   - Visite www.apdobanespa.com
APdoBanespa - 29/09/2014
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