Mais uma vez, a Reforma da Previdência deve ser adiada. O presidente Lula, na tarde de ontem, sinalizou que o governo não realizará nenhuma alteração no sistema previdenciário em 2007. Para o economista Lício da Costa Raimundo, especialista em finanças públicas, não há problemas em não tratar do assunto no próximo ano, mas é preciso pensar e discutir soluções e mudanças na lei de benefícios.
Doutor em Ciência Econômica pela Unicamp, Lício afirma que a previdência é um direito consolidado em outros tempos, quando o trabalho formal era o cerne do capitalismo. Hoje, com o desemprego e a informalidade, os valores gastos pelo Estado se tornam absurdos e uma reforma - que procure o equilíbrio entre desoneração do Estado e o direito do pensionista - se faz necessária. O corte, no entanto, é inevitável: "Vai diminuir o benefício, resta saber em que grau", afirma o especialista. Leia entrevista na íntegra:
Terra Magazine - O presidente Lula sinalizou que não deve fazer a Reforma da Previdência em 2007. Qual o impacto disso?
Lício da Costa Raimundo - Primeiro, qualquer alteração das regras vai abrir um déficit. O Lula, corretamente, classificou esse gasto como um déficit do tesouro e não da Previdência. Acho que foi muito feliz essa intervenção dele para o debate. Porque muitos autores clássicos tratam a previdência como um sistema geral que tem por obrigação gerar um equilíbrio autuarial. Mas não é verdade. A prevdência não foi pensada para funcionar assim. Foi montada para ser um sistema de oferecer cobertura aos trabalhadores brasileiros, para ser uma peça fundamental do nosso Estado de bem-estar. E a Constituição de 1988 prevê a criação do benefício, mas não de um sistema que gere a sua receita. Isso não é um problema: quando você diz "os trabalhadores rurais têm direito a um benefício, mesmo que não tenham renda para tal". E daí? Isso é um direito, e a coletividade tem de pagar.
E como resolver?
Essa rubrica do gasto social vai aumentar, e isso vai pressionar não só o governo, mas a sociedade brasileira, a se posicionar. Você tem dois gastos que cresceram muito nos últimos anos no Brasil: os sociais - especialmente previdência - e a dívida. Esse crescimento de gastos tem de ser coberto com o aumento da carga tributária. E a sociedade brasileira dá sinais de exaustão de tributos. Nos anos 90, a carga tributária era de 24% do PIB, e hoje gira em torno de 38%. Esse aumento existiu para dar conta dos gastos sociais e com a dívida. Se não dá mais para aumentar a carga tributária, precisa reacomodar: ou diminui os gastos sociais ou diminui a dívida, ou os dois. E aí, é claro, quem hoje recebe os R$ 160 bilhões na forma de juros vai querer corte na Previdência, e quem recebe a aposentadoria vai querer corte nos juros. O conflito está só começando.
Qual o tamanho da "culpa" dos gastos com previdência na economia nacional? Até que ponto ela pode ser considerada responsável pelo déficit?
Como proporção do PIB, os gastos com Previdência crescem, e isso significa que o nosso acordo social coletivo está sendo cumprido de acordo com a Constituição de 1988. E vai dizer que essas pessoas que recebem estão contra o Brasil? Não. Eu acho que a gente pode até rediscutir isso, mas esse é o reflexo de um acordo social firmado anos atrás.
E agora?
Se você for olhar para o orçamento da previdência, é relativamente simples entender o gasto: é só somar o que o Estado paga de pensão. Mas quando você vai ver a receita, é mais complicado. Por exemplo, a CPMF: na origem, essa contribuição é destinada a gastos com seguridade social. Se você for olhar para o fluxo, você percebe que ele vai para o Tesouro, o caixa da União, e de lá só Deus sabe. Então, quando se faz a conta do défict previdenciário, não se leva em conta as contribuições destinadas a esse gasto. É preciso fazer a conta certa. E se você somar todas as tributações que, em teoria, são destinadas à seguridade social, mais a contribuição dos trabalhadores, a conta da previdência fecha. E chega a ser superavitária.
Mas isso não elimina o problema, que são os gastos crescentes com seguridade social. Eu vejo duas soluções: a primeira, mais rígida, é o corte de benefícios; uma solução possível, mas não desejada. Outra opção é o crescimento mais consistente do País, com geração de emprego e mais arrecadação. Isso vai atenuando o crescimento dos gastos em proporção do PIB. E tem as propostas mais conservadoras, que são diminuição de tempo de recebimento do benefício, aumento do tempo de contribuição, diminuição do valor do benefício...
...Como a desvinculação do salário mínimo, que vem sendo discutida...
Esse é um ponto. A idéia da vinculação é proteger o beneficiário. Mas eu não vejo com maus olhos a desvinculação, é assim na maior parte dos países. Mas é preciso vincular a algum índice de preço, para não se perder o valor real.
Voltando aos gastos: como suportar esse déficit sem a reforma?
As questões são colocadas de uma forma que não é real: "Ou faz agora ou o Brasil quebra". Não sei se o Brasil quebra. E se você fizer no calor da discussão, vai ter gente que vai sair prejudicada, e não tenho dúvida de que o prejudicado será o beneficiário.
E existe alguma possibilidade de a reforma não prejudicar o beneficiário?
Não. Não vejo como. Mas ela tem de ser feita porque a previdência foi pensada para um mundo que tinha o emprego como elemento central da economia. E infelizmente não é mais assim. A previdência ganhou status mundial no pós-guerra, quando havia um aspecto central no capitalismo, que era o emprego. Crescia a economia, crescia o emprego, sempre assim. Dos anos 80 para cá, isso acabou, as taxas de desemprego e de informalidade são cada vez maiores. E sem a centralidade do emprego, e a conseqüente contribuição, não dá para sustentar esse sistema. É inevitável que vai diminuir o benefício, resta saber em que grau.
Fonte: Terra Magazine
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