Para onde vai o imposto que
pagamos? Encontrei a pergunta como um “interessante” link na página de abertura
do site da Secretaria da Receita Federal (1).
Ao ser acionado, o link
conduz o internauta para um texto elaborado pela Secretaria de Comunicação de
Governo e Gestão Estratégica (Secom/Presidência da República) (2). A referida
nota, já no primeiro parágrafo, afirma ser “dever do Estado informar para onde
vão os recursos recolhidos” (do pagamento de impostos).
São apontadas várias
destinações para as receitas tributárias. Entre outras, encontramos: (a) saúde;
(b) educação; (c) programas de transferência de renda e de estímulo à cidadania,
como o Fome Zero e o Bolsa Família; (d) programas de geração de empregos e
inclusão social, como o plano de reforma agrária, crédito rural para a expansão
da agricultura familiar, plano de construção de habitação popular, saneamento e
reurbanização de áreas degradadas nas cidades; (e) construção e recuperação de
estradas; (f) investimentos em infra-estrutura; (g) construção de portos e
aeroportos; (h) incentivos para a produção agrícola e industrial; (i) segurança
pública; (j) estímulo à pesquisa científica, ao desenvolvimento de ciência e
tecnologia, à cultura, ao esporte e à defesa do meio ambiente.
Finaliza o texto a seguinte
afirmação: “O imposto que você recolhe volta para todos os brasileiros em
forma de benefícios”.
O registro mencionado,
presente em posição de destaque no site da Secretaria da Receita Federal, não
apresenta um número sequer relacionado com o volume de recursos arrecadados ou
mesmo com o nível de gastos com os programas públicos citados. Ademais, omite
certos gastos públicos facilmente qualificáveis como estratosféricos.
Recentemente, em função de
estudos realizados no âmbito do Mestrado em Direito da Universidade Católica de
Brasília, procurei resposta exatamente para a mesma pergunta. As informações
obtidas em fontes oficiais apontam para uma realidade significativamente diversa
daquela pintada pelo governo do “Brasil, Um País para Todos”.
Com efeito, o quadro da
despesa por órgão federal em 2003 aponta para os seguintes números, em ordem
decrescente (3):
(a) Encargos Financeiros da
União: R$ 149,2 bilhões;
(b) Ministério da
Previdência Social: R$ 116,2 bilhões;
(c) Transferências
Constitucionais: R$ 47,4 bilhões;
(d) Ministério da Saúde: R$
30,2 bilhões;
(e) Ministério da Defesa: R$
25,8 bilhões;
(f) Ministério da Educação:
R$ 18,1 bilhões.
Percebe-se, com clareza, que
o principal componente do gasto público da União está representado pelos
encargos financeiros. Da execução orçamentária total no ano de 2003, os encargos
financeiros da União atingiram 29,73% (vinte e nove vírgula setenta e três por
cento), excluído o refinanciamento da dívida pública mobiliária
federal.
Sublinhe-se que as despesas
com encargos financeiros foram 8,23 (oito vírgula vinte e três) vezes superiores
aos gastos do Ministério da Educação e 4,93 (quatro vírgula noventa e três)
vezes superiores aos gastos do Ministério da Saúde. Significaram, ainda, 128,37%
(cento e vinte e oito vírgula trinta e sete por cento) das despesas totais do
Ministério da Previdência Social.
Arrolo, ainda, um exemplo
“doméstico” e perverso, relacionado com as peripécias orçamentárias e
financeiras praticadas pelo Governo Federal com os recursos
arrecadados.
A Procuradoria-Geral da
Fazenda Nacional (PGFN) juntamente com os créditos públicos federais não pagos
arrecada o chamado encargo legal. Esta exação, criada pelo Decreto-Lei no 1.025,
de 1969, correspondente a um acréscimo de 10% (dez por cento) sobre o valor
consolidado do débito, quando da inscrição deste último na Dívida Ativa da
União, e de 20% (vinte por cento), por ocasião do ajuizamento da execução fiscal
pertinente.
Por força de determinações
legais expressas, representadas pelo art. 3o da Lei no 7.711, de 1988 e pelo
art. 8o, parágrafo único da Lei de Responsabilidade Fiscal, os valores
arrecadados a título de encargo legal somente podem ser utilizados para: (a)
custeio e investimento na PGFN e (b) remuneração dos Procuradores da Fazenda
Nacional.
Percebe-se que a atividade
de cobrança da Dívida Ativa da União, assim como o funcionamento das demais
atividades do órgão, notadamente a defesa judicial da União em matéria fiscal,
ao menos em tese, poderia ser financiada pelos valores do encargo
legal.
Identifica-se, entretanto,
uma profunda anomalia na dinâmica de financiamento da PGFN, tal como desenhada
pelo legislador.
Com efeito, uma série de
nefastas, equivocadas e ilegais restrições de natureza orçamentária e financeira
subtraem os recursos necessários para o desenvolvimento escorreito das ações
deste importantíssimo segmento da Administração Tributária (4).
Não resta nenhuma dúvida, a
opção política deliberada, pensada e aplicada de forma cirúrgica é de fazer
caixa, engordando o superávit primário, com os recursos legalmente destinados
para melhor aparelhar a recuperação de créditos públicos não pagos.
Nesta linha, não se busca a
melhoria das condições de trabalho e, por via de conseqüência, dos níveis de
arrecadação. Tudo repercutindo no aumento de receitas e num melhor desempenho
fiscal. Este último caminho apresenta, sob a ótica dos “donos do poder”, o
inconveniente da cobrança, do incômodo mais freqüente e efetivo, dos
financiadores de campanhas políticas e partícipes ou beneficiários da
privatização do Estado brasileiro, integrantes do intocável e indefectível
“mercado”, substituto contemporâneo da arena política como local privilegiado
das decisões mais significativas para os rumos da sociedade.
Observa-se que os recursos
financeiros a serem utilizados no processo de soerguimento e fortalecimento
institucional da PGFN estão disponíveis, conforme os ditames constitucionais e
legais em vigor.
Entretanto, para surpresa
geral, o caminho a ser trilhado pela PGFN encontra-se bloqueado por uma série de
equivocadas e ilícitas decisões político-administrativas. O rompimento destas
barreiras pode não ser de interesse dos governos constituídos, mas certamente
interessa a maioria dos setores da sociedade brasileira o funcionamento adequado
dos instrumentos de recuperação de créditos não pagos, vale dizer, de realização
de justiça fiscal. Afinal, somente o Procurador da Fazenda Pública, manejando de
forma eficiente o processo de execução fiscal, consegue igualar o devedor ao
contribuinte.
Feitos estes “acréscimos”,
já é razoavelmente possível responder “para onde vai o imposto que
pagamos”.
Notas de
rodapé
(1)
http://www.receita.fazenda.gov.br
(2) “O pagamento de impostos
é um dever do cidadão. Mas também é um dever do Estado informar para onde vão os
recursos recolhidos. Eles são fundamentais para promover o crescimento econômico
e o desenvolvimento social do País.
Uma parte do dinheiro que
você paga em impostos é aplicada diretamente pelo governo federal. Outra parte
considerável retorna para seu Estado e para seu município e é aplicada
diretamente pelos governos estaduais e municipais.
Recursos importantes são
destinados à Saúde e à Educação, a programas de transferência de renda e de
estímulo à cidadania, como o Fome Zero e o Bolsa Família.
Outra parte dos recursos
obtidos com impostos vai para programas de geração de empregos e inclusão
social, como o plano de reforma agrária, o de crédito rural para a expansão da
agricultura familiar, o plano de construção de habitação popular, de saneamento
e reurbanização de áreas degradadas nas cidades.
Mas o dinheiro dos impostos
também é destinado a construção e recuperação de estradas, investimentos em
infra-estrutura, construção de portos, aeroportos, incentivos para a produção
agrícola e industrial, segurança pública, estímulo à pesquisa científica, ao
desenvolvimento de ciência e tecnologia, à cultura, ao esporte e à defesa do
meio ambiente.
Veja na tabela abaixo alguns
dos benefícios produzidos pela aplicação de políticas de cidadania e inclusão
social em 2004:
Escola pública: 55 milhões
de estudantes matriculados na rede pública, desde a creche até a o ensino
médio.
Merenda escolar: 37,8
milhões de alunos atendidos nos dias letivos.
Livro didático: 93 milhões
de livros para mais de 30 milhões de alunos da rede pública de ensino
fundamental e 2,7 milhões de livros para 1,3 milhões de alunos da 1a série do
ensino médio público do Norte e Nordeste.
Alfabetização de adultos:
1,8 milhão de pessoas foram alfabetizadas.
Programa Saúde da Família:
99,61 milhões de pessoas atendidas por 195.659 agentes comunitários de saúde e
70,34 milhões de pessoas atendidas por 21.609 equipes médicas.
Bolsa Família: 6,5 milhões
de famílias atendidas em 5.533 municípios.
Fome Zero: O Programa de
Segurança Alimentar e Nutricional repassou recursos para a instalação de 19
bancos de alimentos que irão atender um mil entidades beneficentes. O Programa
transferiu verba aos estados e municípios para a construção de 27 restaurantes
populares para atender 10 milhões de pessoas por ano. O Programa de Aquisição de
Alimentos da Agricultura Familiar (PAA) investiu R$ 169 milhões na compra de 222
mil toneladas junto a 68,3 mil agricultores. Além disso, o governo compra
diariamente 620 mil litros de leite de pequenos produtores rurais.
PRONAF: Investimento recorde
na agricultura familiar: R$ 7 bilhões de reais para a safra 2004/2005, que vai
beneficiar 1,8 milhão de famílias de pequenos agricultores.
Para saber um pouco mais
sobre como o governo aplica os recursos arrecadados, acesse a Revista
Brasil.
O imposto que você recolhe
volta para todos os brasileiros em forma de benefícios”.
(3) Dados disponíveis
em:
. Acesso em: 2 jul. 2004. Foram apresentados os itens (órgãos) mais
significativos em ordem decrescente. Não foi registrado o item correspondente ao
refinanciamento da dívida pública (autorização legislativa para a emissão de
títulos).
(4) Objetivando combater a
principal anomalia orçamentária relacionada com a PGFN (o contingenciamento dos
recursos arrecadados pelo encargo legal), o Senador Geraldo Mesquita Júnior,
também Procurador da Fazenda Nacional, apresentou a seguinte emenda ao projeto
de Lei de Diretrizes Orçamentárias para o exercício de 2004:
Ҥ2o. A reserva de
contingência para aplicação do produto dos recolhimentos do encargo de que trata
o art. 1o. do Decreto-Lei n. 1.025, de 21 de outubro de 1969, na forma
estabelecida pelo art. 3o. da Lei n. 7.711, de 22 de dezembro de 1988, não
poderá ser superior a 20% (vinte por cento) do valor da previsão de arrecadação
do referido encargo.”
A proposição legislativa foi
aprovada no âmbito do Congresso Nacional e, logo depois, vetada pelo Presidente
da República Luís Inácio Lula da Silva a partir das seguintes razões:
“O dispositivo não se
coaduna com o art. 6o. da Lei n. 7.711, de 1988, que dispõe que o Poder
Executivo estabelecerá por decreto as normas, planos, critérios, condições e
limites para a aplicação do fundo de que trata o art. 3o. dessa mesma
Lei.
Além disso, a questão da
constituição de reserva à conta de recursos próprios e vinculados, inclusive
quanto ao seu valor, deverá ser decidida no contexto da elaboração da lei
orçamentária anual, especialmente em função do montante das receitas estimadas e
da necessidade de alocação de recursos para que o órgão ou entidade possa
realizar as despesas indispensáveis ao alcance de seus objetivos.
Dessa forma, o
estabelecimento a priori desse percentual contraria o interesse público, motivo
pelo qual se sugere oposição de veto ao §2o. do art. 12 do projeto de
lei.”
As Consultorias de Orçamento
do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, por intermédio da Nota Técnica
Conjunta n. 6, de 2003, fizeram as seguintes considerações sobre o veto ao
dispositivo antes citado:
“Discorda-se frontalmente
das razões do veto alegadas pelo Executivo. Não há conflito entre o estabelecido
no §2o. e a Lei n. 7.711/88. O texto do dispositivo vetado consubstancia a
preocupação do Congresso Nacional no sentido de ter papel ativo na decisão a
respeito de quais dotações serão “congeladas” como reserva de contingência (GND
9), com o objetivo de se obter o superávit primário previsto, sendo
incontestável que a LDO é o instrumento legal adequado para essa
finalidade.
O dispositivo não
regulamenta o fundo, mas sim, a apropriação, no processo orçamentário, dos
recursos a ele vinculados, atributo constitucional das LDO.
O texto vetado buscava
assegurar à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional (PGFN) parte dos recursos a
ela vinculados por lei, tão necessários à consecução de suas atividades de
recuperação dos créditos dos devedores, promovendo justiça em relação aos
contribuintes cumpridores de suas obrigações pecuniárias para com o Poder
Público. Ao opor veto a esse dispositivo, o Poder Executivo retira do Congresso
Nacional a prerrogativa de participar das decisões sobre a alocação dos recursos
públicos e da definição de prioridades de gastos.”
Convém destacar que o
Senador Geraldo Mesquita Júnior voltou a apresentar, desta vez para incorporação
na Lei de Diretrizes Orçamentárias para 2005, a emenda antes transcrita de
limitação da formação de reserva de contingência no orçamento destinado à PGFN.
Sintomaticamente, a proposição não foi acatada pelo relator, sob direta
influência dos órgãos do Poder Executivo responsáveis pelos assuntos
orçamentários.
Revista Consultor
Jurídico, 22 de Abril de 2005
Sobre o autor
Aldemario Araujo
Castro: é procurador da Fazenda Nacional, professor da Universidade
Católica de Brasília e mestrando em Direito na Universidade Católica de Brasília
e presidente do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional.
Fonte: Consultor Jurídico
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