Código de Defesa do Consumidor e criação de juizados especiais levam clientes de instituições à Justiça Bancos enfrentam avalanche de ações
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Nos últimos dez anos, a população "bancarizada" do país dobrou - passou de 40 milhões para 80 milhões, segundo a Federação Brasileira de Bancos (Febraban). Agências se informatizaram, facilidades foram criadas - como terminais eletrônicos e inúmeros serviços prestados por telefone e internet - e o sistema financeiro garantiu uma presença maior junto à população. O crescimento, no entanto, veio acompanhado de ações judiciais, cujo perfil mudou bastante ao longo da década.
Um levantamento feito pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) a pedido do Valor demonstra que, entre 1994 e 2004, as ações que envolvem bancos (propostas por clientes ou pelas próprias instituições) cresceram 374%. A pesquisa inclui os seis maiores bancos de varejo do país (Banco do Brasil, Caixa Econômica Federal, Itaú, Unibanco, Bradesco e Banco Real) - com exceção do Santander -, que representam cerca de 80% do mercado. Já no Supremo Tribunal Federal (STF), segundo o presidente Nelson Jobim, a média geral de processos analisados pela corte era de 72 mil ao ano na década de 70 e passou para 567 mil no período entre 2000 e 2005. Dentre essas ações, em 2000 e 2001, diz Jobim, mais da metade delas eram relacionadas ao sistema financeiro. De acordo com o presidente da Confederação Nacional das Instituições Financeiras (CNF) e ex-presidente da Federação Brasileira dos Bancos (Febraban), Gabriel Jorge Ferreira, hoje há um volume de 1,6 milhão de processos no STJ relativos aos bancos. Do total, 28,3% são questões relacionadas ao sistema financeiro. Apesar de o levantamento do STJ mostrar apenas a ponta da pirâmide, ele dá um indicativo deste movimento nas demais instâncias do Judiciário. Hoje, por exemplo, apenas um dos juizados de São Paulo, o central da capital, contabiliza 8,5 mil ações envolvendo bancos. Ainda que as instituições não sejam as mais demandadas nessa Justiça - estão atrás de setores como telefonia e planos de saúde -, o número registrado hoje pelo juizado é superior aos processos que o STJ possuía em 1994, ou seja, 8.031. Atualmente, são 38. 064 processos. A Febraban não possui dados estatísticos sobre o número de ações e seu crescimento. Mas o diretor jurídico da instituição, Johan Albino Ribeiro, reconhece que os percentuais têm aumentado anualmente. Há algumas explicações de especialistas para esse aumento. O maior acesso da população ao sistema financeiro é a principal delas, assim como os inúmeros planos econômicos impostos ao longo dos anos. Mas, além disso, há outros fatores, como a aprovação do Código de Defesa do Consumidor, de 1990, e a criação dos juizados especiais cíveis, em 1995. Segundo o advogado especializado na área bancária João Antônio Motta, que de 1982 a 1990 advogou para bancos, em 1987, por exemplo, existiu um movimento grande contra os bancos em razão do Plano Cruzado com ações discutindo critérios de correção. Para o advogado, porém, o que se pode chamar de divisor de águas para os bancos foi o Código do Consumidor. Antes da legislação, o tipo de ação proposta contra as instituições discutia basicamente a forma de cobrança de juros. Já o código abriu um leque de possibilidades de reivindicações contra as instituições bancárias, baseadas em falhas na prestação de serviços. Junto com o Código do Consumidor vieram os juizados especiais, que ampliaram o acesso da população à Justiça por serem caracterizados pela informalidade e por dispensarem a presença de advogados para ações de até 20 salários-mínimos. Os juizados atendem casos de até 40 salários-mínimos. E muitas questões de baixo valor que deixavam de ir à Justiça em razão do custo do processo passaram a ser discutidas em função dessa nova instância judicial. "Antes, o cliente de um banco não entrava na Justiça para cobrar R$ 500,00 porque não valia a pena ou não tinha dinheiro para contratar um advogado", afirma o juiz coordenador do Juizado Especial de Consumo de Belo Horizonte, Vicente de Oliveira Silva. No juizado da capital mineira, das 250 audiências realizadas diariamente, 30% tratam de discussões de consumidores com bancos. O diretor jurídico da Febraban afirma que cerca de 40% das ações que envolvem bancos no país estão concentradas nos juizados. Segundo ele, tratam-se de ações muitas vezes difíceis porque, em muitos casos, não oferecem prazo hábil para os bancos apresentarem provas amplas. Ribeiro exemplifica a situação com uma possível discussão sobre débito indevido. Segundo ele, a defesa neste tipo de caso exige uma pesquisa maior que não pode ser realizada em apenas três ou quatro dias. Dentre os Estados brasileiros, o Rio de Janeiro é o que concentra o maior número de ações bancárias em juizados especiais. De acordo com Ribeiro, o percentual do Rio corresponde a 60% do total de ações existentes no Estado. E o custo de uma ação, diz, não sai por menos do que R$ 2 mil por ano. De acordo com o balanço do banco Bradesco de 2004, 60% dos novos processos cíveis recebidos pela instituição envolvem os juizados especiais. Segundo as notas explicativas do balanço, as ações são originadas no curso das rotinas de trabalho com pleitos de indenização por dano moral e patrimonial e a maioria refere-se a protestos, devolução de cheques e inserção de informações sobre devedores no cadastro de restrições ao crédito. "De um modo geral, as questões discutidas nas ações não constituem novidades capazes de causar impacto no resultado financeiro", informa a nota. Outro dado é que o resultado dos julgamentos tem empatado. Em metade das ações o banco ganha e na outra perde. O diretor jurídico da Febraban e também do Bradesco, Johan Albino Ribeiro, acredita que tem ocorrido uma migração da Justiça comum para os juizados em razão da ausência de custas e maior rapidez nos trâmites dos processos. Além disso, ele acredita que as pessoas estão transferindo para o Judiciário a solução de problemas mais simples que poderiam encontrar uma resposta na própria instituição bancária. "E o Banco Central (BC) também recebe reclamações que são notificadas aos bancos", diz. Ele lembra que quando as queixas não são solucionadas, elas aparecem no ranking do BC. "Esse ranking é temido, ninguém quer aparecer como o mais reclamado." Hoje, o tema campeão das reclamações dos clientes está relacionado ao crédito, como a inclusão do nome do cliente em entidades de proteção ao crédito, como SPC e Serasa, negativação, protesto de títulos e devolução de cheque. No juizado do Rio, esses casos representam cerca de 21% das reclamações, demandas que em geral são propostas com pedido de danos morais contra os bancos. Questões que discutem fraudes, como cartões clonados ou uso de senha por terceiros, representam cerca de 8% dos casos. Já as ações revisionais de contratos, que discutem financiamentos, estão na casa dos 20%. Segundo Ribeiro, os percentuais encontrados no Rio, de forma geral, espelham o que ocorre nos grandes centros do país. Ribeiro afirma que, do total das ações revisionais do Brasil, 65% estão no Rio Grande do Sul. A explicação para este fato deve-se às decisões favoráveis aos consumidores na Justiça do Estado, que difere do restante do país. "Desse tipo de questão os bancos sempre vão contestar porque o STJ tem uma jurisprudência favorável a eles", afirma. O diretor jurídico do contencioso do Unibanco, Marcos Cavalcanti de Oliveira, diz que, dos 2.366 processos que o banco possuía no STJ em 2004, 1.800 casos eram recursos que contestavam decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). "E ganhamos praticamente todos", afirma. Outra vertente mais recente tentou limitar os juros à taxa Selic, mas também tem tido aceitação restrita. "Se tirarmos esse fenômeno do TJRS, o número de processos do Unibanco no STJ pouco mais que dobrou, o que em dez anos não é nada", afirma. O crescimento das ações de consumidores contra bancos teve sua contrapartida. Em 2000, a Confederação Nacional das Instituições Financeiras impetrou no Supremo uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) contestando a aplicação do Código do Consumidor contra o sistema financeiro. O que se questiona é se o código pode ser aplicado em questões referentes ao "custo do dinheiro", como diz o presidente da confederação. Pelo código, por exemplo, é possível aplicar a teoria da imprevisão. Um caso clássico em que os consumidores usaram essa tese ocorreu nas discussões judiciais dos contratos de leasing em 1999, quando houve a maxidesvalorização do real. As últimas decisões dividiram o ônus do aumento do dólar entre instituições e o consumidor. A ação no Supremo está com pedido de vista de Nelson Jobim há três anos e já conta com o voto de dois ministros: um pela procedência em parte da ação e o outro considerando a Adin improcedente. Os bancos Itaú e Real não comentaram a pesquisa do STJ. O Banco do Brasil informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não tem sentido aumento no número de ações. Fonte: Valor online |