A ARTE IMITA A VIDA


    Poucas cenas na televisão brasileira causaram tanto impacto, nos últimos tempos, quanto aquela levada ao ar, na noite da última Quarta-Feira de Cinzas, pela Rede Globo, quando o personagem Jacques Pedreira, ex-vendedor aposentado da novela Senhora do Destino, interpretado pelo ator Flávio Migliaccio, cai agonizante no meio da avenida, em plena folia momesca, e balbucia: “Não me deixem morrer sem a revisão da minha aposentadoria”.

Com uma interpretação magistral, o ator encarnou o drama de milhões de aposentados e pensionistas da Previdência Social, que tiveram suas aposentadorias e pensões calculadas a menor e aguardam por uma decisão da Justiça, que se arrasta lentamente - no caso do personagem, há oito anos - ou pela boa vontade do governo sempre em acordos desfavoráveis.


Na novela Senhora do Destino, de Aguinaldo Silva, temas como homossexualismo, casamento inter-racial, corrupção, tráfico de drogas, migração nordestina e seqüestro de crianças compõem a trama atualíssima. Mas, seguramente, nenhum calou tão fundo quanto o drama de seu Jacques, expressado com assombrosa verossimilhança para milhões de telespectadores, no País onde o discurso dominante continua sendo aumentar as exportações para pagar a dívida, externa, é claro.


Seu Jacques é um cidadão comum, um João-ninguém, morador da Baixada Fluminense, a Bogotá nacional, onde outrora os barões do açúcar e do café ditavam ordens à escravaria, e a plebe rude vagava a esmo, excluída do mercado e da cidadania, porque também, naquele tempo, exportar era o que importava.


Ali, os senhores-de-engenho e grandes proprietários do passado foram substituídos por novos manda-chuvas, como o antológico Giovanni Improta, o ex-bicheiro que ganhou vida na pele do ator José Wilker, personagem da mesma trama. Será isso fruto de nossa herança ibérica, de nosso pendor para o personalismo e a obediência atávica de que nos fala Sérgio Buarque de Holanda?


Estudiosos da nossa formação são unânimes em apontar o caráter cartorial dos movimentos políticos reformistas nacionais, quase sempre de cima para baixo.

“Nossa independência, as conquistas democráticas ao longo da evolução política foram quase sempre recebidas com indiferença pelo povo”, afirmam, posto que fruto de inspiração intelectual e utopias.


Quase sempre, é verdade, porque a grande massa da população que aí está, como o seu Jacques, apostou na esperança contra o medo. Mas a esperança, nos ensina GH, outra personagem, a de Clarice, “é a contemporização com o impossível”.


Primeiro obrigaram os idosos a aguardar em filas intermináveis um recadastramento feito de chofre, por suspeita de fraude em aposentadorias e pensões, índice que giraria em torno de 20%. Confundidos com mortos e usurpadores, cidadãos na casa dos 80 desmaiaram na fila para atender o ministro da imprevidência, premiado com a pasta do Trabalho. Após esse escândalo, um novo recadastramento, agora lento e gradual, está prometido para abril próximo, mas, que não seja no dia 1º.


Admitiu-se o logro, posteriormente, nos valores dos benefícios calculados entre junho de 77 e outubro de 88, com base nas ORTNs, e de 94 a 97, estes últimos decorrentes da URV. O governo acenou com acordos nem um pouco favoráveis, mas que ajudam a encurtar o tempo da chegada do dinheiro para aqueles que, como seu Jacques, já não dispõem de tanto tempo.


Especialistas em direito previdenciário informam que são mais de 30 os casos em que cabem revisões de benefícios. Milhões de aposentados e pensionistas, como seu Jacques, recorreram à Justiça onde os processos estão literalmente parados, por falta de pessoal.


Dir-se-á, em legítima defesa, que a tunga aconteceu em outros tempos, como a outros tempos devem ser creditados os êxitos do atual modelo, que o Palácio do Planalto insiste em tomar para si - crescimento econômico com baixa inflação - rejeitando o ônus de uma dívida social que reproduz aos milhões figuras como a de seu Jacques, desnudadas pelo ator Flávio Migliaccio em nova dimensão -colorida, multifacetada e global.


(Rosane S. Santana)






328 - 15/02/2005
Lene

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