JUSTIÇA DO TRABALHO PARA TODOS João Oreste Dalazen |
Tramita na Câmara dos Deputados proposta de emenda constitucional propondo a incorporação da Justiça do Trabalho à Justiça Federal e fusão do TST com o STJ. Custa-me crer que iniciativa tão infeliz e em descompasso com a realidade brasileira logre aprovação no Congresso Nacional. Exercente de cargo vitalício, devo esclarecer que pessoalmente em nada me atinge. Entretanto, como juiz de carreira que se devota há duas décadas à instituição, julgo de meu dever prestar a esse respeito um testemunho ao povo brasileiro, fonte primária de todo poder, destinatário único do serviço público de distribuição de justiça e, portanto, imediata e diretamente afetado pela desastrosa inovação. E por que se justifica um ramo da Justiça especializado em solucionar os conflitos entre patrões e empregados? Antes de tudo, não se ignore o extraordinário papel político da Justiça do Trabalho, posicionando-se como algodão entre cristais. Desde que o Estado, há cinco décadas, deixou de tratar a questão social como caso de polícia e submeteu-a a uma solução civilizada, inteligente e racional, criou para tanto a Justiça do Trabalho, a exemplo do que sucede ainda hoje na maioria dos países de economia capitalista do mundo ocidental. Recorde-se que presentemente a economia globalizada, provocando desemprego estrutural e enfraquecimento dos instrumentos de pressão da classe trabalhadora (greves, sindicatos), torna ainda mais delicada e preocupante a questão social, tudo a recomendar a pronta e eficaz intervenção do corpo especializado de magistrados da Justiça do Trabalho. É de indagar-se: em País tão heterogêneo, complexo, tenso e de notória expansão da conflituosidade trabalhista, como o Brasil, não será politicamente temerária a extinção da Justiça do Trabalho? Atente-se aqui para atualíssima advertência de SANTIAGO DANTAS: "se o pensamento democrático não for capaz de formular em termos válidos e inteligíveis o seu esquema de reforma social, esta abrirá o seu caminho antidemocraticamente, porque no quadro das tensões internas da sociedade atual, as forças que aspiram a uma participação mais ampla nos benefícios da vida comum são superiores em intensidade às que procuram deixar em segundo plano essa ampliação, para se limitarem à defesa das chamadas garantias democráticas". Ora, ocioso ponderar-se sobre os efeitos deletérios da denegação de direitos sociais, ou sobre o perigo de um cenário de tardança na resolução dos conflitos daí emergentes. De outro lado, importa ter presente que a Justiça do Trabalho ocupa-se primordialmente de aplicar e dar efetividade a um ramo altamente técnico da Ciência Jurídica (o Direito do Trabalho) que exibe traços e particularismos próprios, inexistentes em outros ramos do Direito. Acresce notar a rica, profusa e intricada legislação trabalhista, constantemente alterada para acudir às necessidades de uma sociedade de economia globalizada e em permanente transformação, tudo a desafiar o mais especializado dos profissionais da área. Por isso, esse Direito assim especial exige um corpo de magistrados também especializados, aprovados em concurso público cuja ênfase natural é exatamente a aptidão do candidato nesse campo. Aliás, a tônica da sociedade moderna, na busca permanente de qualidade e produtividade, é a especialização do conhecimento humano, que obviamente desaparecerá se prevalecer a malsinada incorporação. Portanto, causa estupefação e constitui retrocesso histórico eliminar a especialização e o caldo de cultura e de experiência acumulados pela Justiça do Trabalho. A rigor, a idéia de incorporar a JT à Justiça Federal eqüivale, grosso modo, a confiar a um clínico geral o paciente acaso acometido de doença cardíaca e que já se submetia a tratamento exclusivamente com cardiologista! Um despropósito!. Releva destacar igualmente que a Justiça do Trabalho atua o Direito do Trabalho através de um processo trabalhista também especial, devido à absoluta inadequação do processo civil ordinário para fazer frente em celeridade e economia às pretensões que têm seu fundamento nas relações de trabalho. Enquanto o processo civil privilegia a forma e é muito mais lento e burocrático, seguindo o Código de Processo Civil, o processo trabalhista, regulado por copiosa legislação específica, é seguramente o mais acessível (não exige advogado), o mais barato (praticamente de graça) e o mais simples e informal (aceita até reclamação verbal!). Nele há e deve haver um preocupação mais acentuada com a rapidez, dada a urgência em satisfazer verbas de natureza alimentar. Vê-se, assim, que a proposta em cogitação, desafortunadamente, importa extinguir a Justiça que se acha mais próxima do povo brasileiro, não obstante as mazelas e deficiências que todos lhe reconhecemos aqui e acolá; Bem se compreende também a opção política de separar a jurisdição trabalhista da jurisdição comum, ou ordinária quando se atende para a circunstância de que há o fundado receio de que os juízes da Justiça comum, desconhecendo as peculiaridades do Direito do Trabalho e do Processo do Trabalho, busquem amoldá-los a conceitos do direito clássico, sobretudo do Direito Civil e do Direito Processual Civil, muitas vezes incompatíveis com o Direito do Trabalho e com o Processo do Trabalho. Inafastável, assim, confiar litígios envolvendo a aplicação do Direito do Trabalho a juízes predicados de conhecimento técnicos especializados e, sobretudo, imbuídos do espírito do Direito Laboral. Afora isso, salta à vista que a jurisdição ordinária é "demasiado formal, demasiado lenta e demasiado custosa", na justificativa de Mário DEVEALI, para dirimir, além dos litígios que a abarrotam hoje, mais os dois milhões de conflitos trabalhistas que afloram anualmente e em número assustadoramente crescente na Justiça do Trabalho. A exigência de uma jurisdição trabalhista especializada deriva também da própria natureza especial do conflito trabalhista, que difere nitidamente dos conflitos de direito privado em geral; enquanto nos conflitos de direito privado o objeto é preponderantemente patrimonial, nos conflitos trabalhistas desloca-se o objeto para o valor do trabalho humano e para a consideração de que tais litígios estão, como já se disse, "diretamente relacionados com a possibilidade de subsistir do homem". Ademais, enquanto nas disputas privadas em geral pressupõe-se a igualdade social e econômica dos litigantes, nos conflitos trabalhistas, ao contrário, parte-se da absoluta desigualdade sócio-econômica dos contendores. Inegável, pois, a mais "transcendência ou repercussão que o conflito trabalhista gera no meio social" (Mariano TISSEMBAUM), precisamente porque não gira na órbita limitada do interesse apenas patrimonial. Não foi à-toa que um dos mais cultuados processualistas deste século, o uruguaio EDUARDO COUTURE, escreveu que o processo civil comum individualista e liberal, "apoia-se no pressuposto de que os homens são iguais, ao passo que o direito processual do trabalho é um direito elaborado totalmente com o propósito de evitar que o litigante mais poderoso economicamente possa desviar e entorpecer os fins da Justiça". E arrematou, a propósito da necessidade de subtrair o litígio trabalhista da Justiça comum:
Ora se tal conclusão resultou imperiosa na década de 40, com muito maior razão hoje em que os conflitos trabalhistas apresentam-se, com freqüência, extremamente complexos, suscitando questões tormentosas e atormentadoras mesmo para o profissional mais talhado e experiente. Resulta manifesto, assim, que há um direito, um processo e um conflito especialíssimos, a justificar plenamente correspondente Justiça do Trabalho. Não se pode perder de vista ainda que a Justiça do Trabalho brasileira orgulhosamente exibe um feito notável e inegável: é o único segmento do Poder Judiciário que conseguiu levar o direito às classes populares. Essa função social e política da Justiça do Trabalho não pode ser minimizada neste País contraditório e largamente dividido, em que o conflito trabalhista assume feição preocupantemente explosiva, requerendo imediata e eficaz intervenção estatal. Está claro que a instituição clama por aperfeiçoamento em profundidade, sobretudo para corrigir fatores de lentidão. Contudo, reformar não é demolir! Convém aos donos do poder não olvidarem que a Justiça do Trabalho é o último refúgio das massas famélicas e sequiosas de Justiça! |