A FORÇA DA INDIGNAÇÃO
A GENTE SE ACOSTUMA...MAS NAO DEVERIA...


Flávia Lippi

             A gente sempre se acostuma. Mas não deveria. A gente compra um apartamento sem vista para o mundo e vive de janelas. E como não vemos o mundo, logo nos acostumamos a não olhar para fora. Como não tem nada para olhar lá para fora, sequer abrimos as cortinas. Sem abrir as cortinas, nos acostumamos à luz artificial. A gente não fica indignado e se acostuma com a vida na escuridão.

A gente acorda de manhã, correndo porque podemos perder a hora. A gente não fica indignado com a falta de tempo para tomar o café da manhã. Para não perder o tempo no trânsito, lemos o jornal. Mas a gente se acostuma. A gente se acostuma até a comer sanduíche porque não dá para almoçar... A gente não fica indignado por não ver o dia, quando já é noite no trabalho. Não dá para ficar indignado na volta, porque o cansaço nos faz dormir no ônibus para casa. A gente se acostuma a dormir atrasado para não perder a hora no dia seguinte. A gente se

acostuma a não ficar indignado.

A gente engole o jornal da guerra. Engolindo a guerra a gente aceita os mortos e nem fica indignado deles virarem números. Aceitando os números, a gente deixa de acreditar na paz.

A gente se acostuma a ser odiado por quem não nos conhece. A não ficar indignado com a falta de ética. A não chorar de raiva.

A gente não fica indignado com tantas contas para pagar. A gente se acostuma com a luta para ganhar dinheiro. A gente se acostuma, até, em ganhar

menos do que precisa. A gente não fica indignado em pagar mais do que as coisas valem. A gente se acostuma a trabalhar em mais de um emprego só para pagar contas nas filas intermináveis. A gente se acostuma com a falta de democracia. A gente não fica indignado com as crianças nas janelas dos carros. A gente teme a infância. A gente se acostuma com a falta de solidariedade e nem fica indignado com os irmãos que não nos notam.

A gente se acostuma a ver cartazes, folhetos, lixo da civilização pelas ruas. A gente não fica indignado com tantos comerciais nas revistas, nos jornais, na televisão, no rádio. A gente se acostuma até com o telemarketing.

A gente se acostuma com cálculos econômicos, longo prazo, potencialidades, referências de peso, modernidade, tudo arbitrado com fria racionalidade. A gente não fica indignado em ter que se acostumar com mais novidades, aprender a lidar com elas e a se submeter ao ritmo delas. A gente se acostuma à poluição.

Ao ar-condicionado, ao cigarro, ao chefe mal-educado. A gente não fica indignado com a falta do sol. Com a água de torneira, o bicho na barriga, a falta da água potável. O fim dos rios, a poluição dos mares, a morte dos peixes, a extinção dos seres.

A gente se acostuma a achar tudo óbvio e rotineiro. A não ficar admirado e a não conduzir a reflexão criadora. A gente se acostuma a não ser como as crianças que se admiram com tudo e fazem tudo com indignação. A gente nem fica indignado em não ser um ser humano honesto. Dá para acostumar???

Flávia Lippi é jornalista, apresentadora e criadora do Programa Repórter Eco, exibido todos os domingos, às 19h, na TV Cultura (canal 2). Empresária, é proprietária da Corajosa Consultoria Idéias e Estratégias em Comunicação Consciente. Participa de programas na Rádio Capital, escreve para mais de 22 veículos de comunicação e ministra palestras. Flávia também é presidente da ONG Brasil Visão 2000 e conselheira da ONG ABTOS. Escreve mensalmente aos leitores do Newsletter Carreira & Sucesso, abrindo um espaço para reflexão.





212 - 16/11/2004
Celeste Viana

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