Santander: Estudo aponta problemas trabalhistas


             BRASÍLIA - Quanto mais o tempo passa e a tecnologia avança, mais se complica a vida do cidadão comum. Falamos de nós, não de nossos netos, já nascidos com a cabeça feita para decifrar e digitar centenas de teclas de computadores, telefones celulares, sofisticados aparelhos de televisão e de som. Máquinas malvadas substituíram os bancários de outras épocas e uma olímpica parafernália de controles próximos e remotos fazem-nos tropeçar até no banheiro, com atenção redobrada para os sistemas de vigilância doméstica que começam a apitar quando o gato entra em casa.

Somos despersonalizados e humilhados

Até aí, cabe-nos deglutir a modernidade, tentar conviver com ela ou autocondenar-nos ao exílio em plena realidade cibernética. Importa menos duvidar do sentido prático de um telefone que, além de falar, tira fotografias, calcula a raiz quadrada da distância da Terra à Lua, serve de despertador e nos diz quantas letras existem na Bíblia impressa por Guttemberg. Também não há que reclamar de tantas senhas que nos obrigam decorar montes de algarismos para continuar sobrevivendo.

O grave, nessa vertiginosa escalada tecnológica, é que somos cada vez mais despersonalizados. E humilhados, também. Confirme a evidência quem procurou uma dessas megalojas especializadas em vender, por exemplo, aparelhos elétricos. A pessoa chega, quer adquirir o produto à vista, com um cheque, mas é desaconselhada, para não dizer proibida.

Desconfiados, convencem-nos de que se comprarmos à prestação não haverá juros, desde que nos cadastremos para receber um cartão da empresa. Aí começa o calvário. Exigem até o número do nosso primeiro atestado de vacina. Devassam a vida financeira, profissional, comercial, eleitoral e militar do infeliz, obrigado a revelar-se por inteiro diante de uniformizados rapazes ou mocinhas com eternos sorrisos de indiferença e de superioridade.

Passam nossos cartões de crédito e demais documentos pelo raio-X, tiram cópias, contatam empresas especializadas em flagrar vigaristas, imaginando não estarmos percebendo, e fazem-nos andar de caixa em caixa. Já se passaram duas horas, quando as filas são pequenas e, no final, recebendo um cheque pré-datado, culminam com boa nova: "Para pronta entrega não dá mais, a promoção venceu ontem, mas, em quinze dias, o senhor receberá o aparelho"...

O saco de maçãs

Diante disso, dias atrás, decidi tentar uma experiência do século anterior. Passei no banco, convenci o gerente a liberar certa quantia em dinheiro, aceitando o prazo de 48 horas para receber, e, afinal, colocando as notas num desses sacos de carregar maçãs dirigi-me à megaloja. Apontei para um aparelho em exposição e disse querer aquele mesmo, para levar na hora, pagando à vista e em espécie.

Foi um pandemônio. Sucederam-se os funcionários, em cascata. Desconfio terem chamado até o sócio majoritário da empresa. Ninguém queria receber o dinheiro, em notas de cinqüenta reais. Alguns nem se dignavam a olhar para o saco de maçãs. Não cederam sequer diante da ameaça de serem chamados o Procon, o Cade, o Departamento de Defesa da Moeda, o Banco Central e o FMI. Tudo deveria seguir a rotina da exposição explícita das tripas do comprador, submetido a uma tomografia ampla, geral e irrestrita.

Convenhamos, o admirável mundo novo uma vez imaginado por Aldous Huxley ficou pior. Transformou-se num abominável mundo novo. Até nos atos mais corriqueiros deixamos de ser indivíduos. Viramos números, letras e siglas, com o agravante de que se não decorarmos nem soubermos digitar essas verdadeiras taboas de logaritmos estaremos excluídos da civilização.

A vida, positivamente, deveria ter-se tornado mais fácil e mais amena com o avanço tecnológico. Ao contrário, transformou-se numa guerra. Virou um sacrifício.

Atropelado por tantos números e tantas obrigações, o cidadão comum vê-se compelido a provar inocência, todas as horas, quando a natureza das coisas sempre impôs que se lhe provasse a culpa, havendo indícios concretos para isso. Nossos ancestrais trogloditas já enfrentavam a dicotomia entre massificação e individualismo, mas, convenhamos, é demais, do jeito que vão as coisas.

Só faltará, mesmo, precisarmos ser cadastrados para respirar. Para cada aspirada, uma digitação e múltiplas senhas, sem falar, é claro, da necessidade da devassa completa de nosso passado antes de nos candidatarmos ao oxigênio futuro.

Fonte: Tribuna da Imprensa - Coluna do Carlos Chagas




204 - 12/11/2004
Celeste Viana

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